A Dra. Gláucia M. F. S. Mazeto e o Dr. Gregório Lima de Souza comentam o artigo “Absorption of thyroid drug levothyroxine improves with vitamin CA”. Os dois especialistas são da Disciplina de Endocrinologia e Metabologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp.
Autores: Sandra Licht & Paula Antunez
Comentado por: Gláucia M. F. S. Mazeto** e Gregório Lima de Souza*
A reposição oral com levotiroxina (L-T4) representa o tratamento de escolha para o hipotireoidismo (1). Embora esta se constitua em terapia simples e relativamente de baixo custo, muitas vezes as metas terapêuticas não são atingidas. Isto ocorre devido a fatores como baixa adesão ao tratamento ou absorção errática da medicação (2). De fato, certas doenças, alguns medicamentos e mesmo alimentos podem interferir com a absorção da L-T4. Por outro lado, são raras as descrições de substâncias que melhorem a biodisponibilidade do hormônio.
Artigo apresentado no Endocrine Society’s 90TH (Annual Meeting em São Francisco), pelas pesquisadores da Universidade de Buenos Aires, Sandra Licht e Paula Antunez , descreve o aumento da absorção de L-T4 influenciado pela vitamina C.
O estudo foi realizado em 11 pacientes que faziam uso de altas doses de L-T4, sem no entanto, conseguir atingir níveis normais de TSH sérico e reduzir sintomas do hipotireoidismo, tais como fadiga, depressão, ganho de peso. Segundo as autoras, foram excluídos: má aderência, pacientes com doença celíaca ou em uso de cálcio, ferro ou anti-ácidos.
Durante um período de seis semanas, os pacientes receberam 1g de vitamina C junto com o comprimido de L-T4 por via oral. A vitamina C foi diluída em 200 mL de água.
Os resultados mostraram redução média de 69% nos níveis de TSH nos 11 pacientes estudados, sendo que, destes, nove atingiram as metas de controle laboratorial.
As autoras concluem que a melhora dos níveis hormonais refletiria uma melhor absorção da droga e indicam a associação das duas substâncias em pacientes com dificuldade de absorção da L-T4.
A absorção da L-T4 ocorre no intestino delgado de forma variável, sendo apenas 70-80% da dose absorvida. Apesar de se conhecer o local, o mecanismo preciso de translocação transmembrana envolvido nesse processo não está esclarecido(3). Alguns estudos indicam que o pH baixo favoreceria este processo (4). A variação de absorção é dependente de vários fatores, tais como: certas doenças, veículos utilizados na preparação do hormônio, medicamentos de uso concomitante, conteúdo e flora intestinais e componentes dietéticos. É bem documentado pela literatura a interferência exercida, na absorção da L-T4, pelas doenças intestinais (ressecções intestinais, síndrome de má absorção) ou pelo uso concomitante de determinadas drogas (sais de cálcio ou ferro, sucralfate, antiácidos, fenitoína, rifampicina, sertralina, lovastatina, amiodarona, entre outras). Devido ao fato de vários alimentos, tais como o café (5), a soja (6) e o excesso de fibras dietéticas (7), interferirem com a absorção da L-T4, recomenda-se a administração longe das refeições, preferencialmente em jejum, pela manhã.
Descrições de substâncias que otimizem a biodisponibilidade do hormônio, ou reduzam a necessidade do tempo de jejum, não são freqüentemente descritos. Considerando-se a possível influência positiva do pH reduzido sobre a absorção da L-T4 (4), substâncias ácidas poderiam ter um papel benéfico neste processo.
A vitamina C é um exemplo de nutriente ácido. Constitui-se em vitamina essencial e hidrossolúvel. Exerce papel antioxidante na proteção de enzimas e na síntese de inúmeras substâncias, como carnitina, esteroides, catecolaminas e conversão de ácido fólico em folínico. Participa também na síntese de colágeno e na reparação tissular, além de aumentar a absorção intestinal de ferro. É rapidamente absorvida no intestino distal, através de processo ativo e, possivelmente, dose-dependente . É facilmente eliminada pela urina, o que dificulta a intoxicação do organismo podendo, porém, quando em excesso, ocasionar problemas como diarreia, nefrolitíase e alterações no ciclo menstrual (8).
Estudos têm sugerido o papel da vitamina C no aumento da absorção de minerais tal como o ferro (9). O trabalho apresentado na Endocrine Society sugeriu que a vitamina favorecesse a absorção do hormônio L-T4. Analisando-se a literatura, não foram encontradas outras referências sugerindo efeito similar. Estudo avaliando a influência da ingestão do suco de grapefruit, o qual é rico em vitamina C (10), encontrou, ao contrário, uma discreta lentificação da absorção, sem influência significativa sobre a biodisponibilidade do hormônio (11).
A quantidade média necessária de vitamina C para homens e mulheres, a partir dos 15 anos, é de 40 a 60 mg diárias (12). No entanto, especialistas do Conselho Nacional de Pesquisa dos Estados Unidos (National Research Council) estão revisando essa quantidade com objetivo de aumentá-la: o novo valor, em estudo, poderá variar de 100 mg até, no máximo, 200 mg por dia, para pessoas na faixa etária citada. Não é indicado o uso de suplementos que, em geral, contém mais de 10 vezes a recomendação diária da vitamina, ou seja, cerca de 1.000 mg ou 1 g em cada pastilha ou tablete (8,13).
No estudo em questão, a dose utilizada pode ser considerada acima dos valores indicados de reposição ou tratamento, mesmo em casos de escorbuto, onde são usuais doses de 200 mg / dia. Portanto, ao se considerar os efeitos benéficos sobre a absorção da L-T4, deve-se ponderar as possíveis consequências da supradosagem da vitamina C.
Ao estudar-se a biodisponibilidade de determinado medicamento, é fundamental que os critérios de exclusão dos grupos estejam bem definidos. No resumo avaliado, não consta a negativa ao uso das inúmeras drogas que sabidamente interferem na absorção da L-T4. Da mesma forma, são exíguas as informações sobre doenças, e forma de investigação das mesmas, que poderiam influenciar neste processo. Por exemplo, quão profunda foi a investigação para a exclusão de doença celíaca ? Este fato poderia originar um viés na análise dos dados.
Visto que os mecanismos de absorção de L-T4 não são completamente elucidados, que rotineiramente nos deparamos com pacientes nos quais a má-absorção ocorre por razões indeterminadas, além da incômoda necessidade de permanecer em jejum por aproximadamente 30 minutos após a ingestão da L-T4 e da frequente associação com medicações que interferem com absorção da droga, esse estudo traz boas perspectivas em relação ao manejo do paciente hipotireoideo. No entanto, considerando-se o número pequeno de pacientes, a ausência de grupo controle, a falta de especificação dos critérios de exclusão e a não inocuidade dos excessos de vitamina C, parece-nos precipitado a conclusão dos autores em indicar o uso desta em pacientes com dificuldade de absorção do hormônio. Por outro lado, o referido trabalho estimula, sem dúvida, a realização de outros estudos, controlados, randomizados e duplo-cegos, os quais poderiam trazer maiores informações e evidências sobre a influência dessa vitamina na absorção de L-T4.
Veja o artigo original na íntegra.
Referências:
- Mandel SJ, Brent GA, Larsen PR. Levothyroxine therapy in patients with thyroid disease. Ann Intern Med 1993;119:492-502.
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- Centanni M, Gargano L, Canettieri G, et al. Thyroxine in goiter, H. pylori infection, and chronic gastrits. N England J Med 2006;354:1787-1795.
- Benvenga S, Bartolone L, Pappalardo MA, ET AL. Altered intestinal absorption of L-thyroxine caused by coffee. Thyroid. 2008 Mar;18(3):293-301.
- Bell DS, Ovalle F. Use of soy protein supplement and resultant need for increased dose of levothyroxine. Endocr Pract. 2001 May-Jun;7(3):193-4.
- Liel Y, Harman-Boehm I, Shany S. Evidence for a clinically important adverse effect of fiber-enriched diet on the bioavailability of levothyroxine in adult hypothyroid patients. J Clin Endocrinol Metab. 1996 Feb;81(2):857-9.
- Shils ME, Olson JA, Shike, M, Ross, AC. Modern Nutrition in Health and Disease, 10ª ed, Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 507-523.
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- Lilja JJ, Laitinen K, Neuvonen PJ. Effects of grapefruit juice on the absorption of levothyroxine. Br J Clin Pharmacol. 2005 Sep;60(3):337-41.
- World Health Organization (WHO). Disponível em: http://whqlibdoc.who.int/publications/2004/9241546123_annexes.pdf. Acessado em: 1 de setembro de 2008, às 15:15 hs.
- Massey LK, Liebman M, Kynast-Gales SA (2005). “Ascorbate increases human oxaluria and kidney stone risk”. J. Nutr. 135 (7): 1673–7.
* Gregório Lima de Souza, médico residente de Endocrinologia e Metabologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp.
** Gláucia M. F. S. Mazeto, professora-assistente doutora da Disciplina de Endocrinologia e Metabologia da Faculdade de Medicina de Botucatu, Unesp.